Fim de mundo debaixo do assoalho

1986, colônia de uma serraria em Ji-Paraná. Sei lá, talvez por causa de mais uma das minhas “artes”, de acordo com o parecer da minha doce mãezinha, não sei...Só sei que de repente, naquela tarde, me peguei fugindo, desesperadamente, de um bando de guris e mulheres (minha mãe, uma tia, por parte de pai, e uma gaúcha chamada Irene) que gritavam:
-Pega o Marcos! Pega o Marcos!
Lembrei-me até do desenho do Dick Vigarista: Pegue o pombo! Pegue o pombo!
Aquilo estava virando um espetáculo nada divertido para mim. Quem se divertia eram aquelas mulheres e os guris, todos doidinhos para verem o couro comer no meu lombo. Além do mais eu estava ficando cansado e nada daquela turba largar do meu pé.
Até que me veio uma brilhante ideia à cabeça: Aninhar-me debaixo do assoalho da casa. Como o terreno era inclinado, dava um refúgio da hora no cantinho. Plano pensado, realizado. Meti-me lá debaixo da casa, com aranhas e outros bichos minúsculos.
- Ele está debaixo da casa! - Gritou um dedo-duro.
- Ué virou tatu agora, é! Ô Irani, o bicho encovou.
- Estuma um desses meninos nele... kkkkkk!
Uma mulher até se arriscou a entrar debaixo do assoalho, mas desistiu por causa das aranhas. Minha mãe gritou:
- Sai daí, Marcos, aí tem bicho perigoso...
“Bicho perigoso tem é aí fora”, pensei. Tratei de me esconder melhor atrás de um palanque. Elas tentaram fazer os miúdos irem lá no fundo me arrastar. Mas ninguém topou a ideia macabra. Mas no meio tinha uma tal de Patrícia, de cabelos cacheados, filha da Irene, que por uns cruzados, encarou a barra.
- Vai, Patrícia, arrasta o Marcos aqui pra nós.
Fiquei desesperado. Era o que me faltava. Porém, me lembrei de um cachorrinho na colônia que quando a gente o encurralava, ele rosnava e não havia piá que se arriscava a arredá-lo do lugar.
Resolvi adotar a tática do cãozinho. À medida que Patrícia se aproximava, comecei a rosnar e a chiar. A menina deu uma recuada meio cabreira. Ficou em dúvida se continuava ou não.
A Irene gritou:
- Pode ir, minha filha. Mamãe está aqui.
            “Ah, miseravi, mamãe ta aí, nem”. Pensei, acuado no fundo do beco. “Vai ver só”.
A gauchinha se animou de novo. Chega uma hora que o homem tem que encarar seus medos e mostrar para que é que veio ao mundo. Meus latidos e rosnados já não estavam resolvendo nada. Até parece que estavam dando mais ousadia para a Patrícia.
Então me lembrei de uma briga de  mulheres na colônia (por causa de macho, de acordo com as fofocas) e de uma palavra no meio do fuzuê: “Pega ela pelos cabelos, fulana, que ela cai”. Pensei: “Vai se desse jeitinho mesmo. Quando ela chegar mais perto, vou agarrá-la pelos cabelos.”
Dito e feito. Quando vi que Patrícia estava ao meu alcance, engalfiei minha mão nos cachos dela. Ela foi tentar se safar das minhas mãos, acabou metendo a cara no chão e começou a gritar. Quanto mais ela gritava mais alto eu latia. Pronto, a balbúrdia começou!
A mulherada se desesperou. A Irene tentou entrar debaixo do assoalho para salvar a filha e quase fica entalada.
- Meu Deus! O Marcos vai matar a Patrícia!
- Solta a menina, menino!
- Solta minha filha! Solta minha filha! Solta ela!
Quando percebi que estava tocando terror no pedaço, aí que me empolguei e valorizei o serviço mesmo. Deixei de latir e comecei foi a urrar mesmo. A galera foi à loucura!
Era mulher gritando, era a gurizada chorando, era eu urrando. Fim de mundo. Minha tia berrou:
- Esse menino está com o cão no couro!
Até que alguém teve uma ideia. Pegaram uma enxada e começaram a cavar o solo no canto em que o Marcos estava entocado. Fizeram um buraco e começaram a me cutucar.
Assustado, soltei os cabelos de Patrícia e desembestei de lá debaixo da casa feito um corisco. A pirralhada curiosa que estava assistindo tudo na entrada, quando me viu abandonando a toca, espirrou para tudo quanto é lado fazendo o maior escarcéu. Ganhei a branquiara.
Pelo menos dessa vez ninguém foi no meu encalço. Estavam mais preocupados em ver as avarias que tinha provocado na Patrícia.

Nem me recordo mais se tomei surra neste dia. Mas às vezes os animais nos ensinam muitas lições. Pessoas também.

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