Um conto para sexta-feira santa...

E na sexta-feira santa é pecado caçar. Não se deve comer carne vermelha. Peixe é o costume. Diz a tradição dos antigos. Mas Vô não queria saber de tradição e ao ver a Vó com peixe para o almoço cismou:
_ Vou caçá sim e num tem um fi di Deus qui mi tope o caminho!
_ Mas véi, ocê já sabe o qui se sucedeu com o compadi Mané da mula manca qui ficô um cadão di dias aluado, homi. Vai qui si sucede a merma praga cum ocê, véi.
_ É cadi quê qui cumpadi é cabra frouxo mermu, muié. Eu vou sim qui é mais pra mode de prová pr' essa cambada gnoranti qui caçada é coisa di machu i qui todo dia é dia mermo iguali.
Vó tentou demover o Vô do seu desatino de todas as maneiras. Mas não teve testemunho e nem recordação, ameaça de castigo e nem maldição que o fizesse declinar da empreitada. E lá se foi o velho com sua 20 na cacunda, pendurado no ombro direito o embornal com os cartuchos e reservas de chumbo além da garrafa de café, na cintura uma peixeira Tramontina, que era pra rasgar o ventre da presa. E em cima de seu rastro ia o Barão, cachorro vira lata especialista em rastrear paca, tatu, cutia não.
O Vô caminhou pelo pasto, atravessou o córrego lépido e, seguido de perto pelo Barão, entrou por um trilheiro na mata.
           Cinco horas da tarde do dia santo e o sol já se descambando por sobre a mata lá na fundiária após o riozinho. “Num pode se caçá na sexta-feira santa, quanta baboseira. É hoje qui provo pra esses turrão qui isso num é nada”. – Vô não parava de murmurar para si mesmo.
A mata escura e fria até parecia pressentir que o velho estava desobedecendo a uma tradição das antigas. Ficou silenciosa. Manjando o idoso treteiro.
De repente Barão deu uma fungada, empinou as orelhas e rapidamente tomou a dianteira. Rosnou. Latiu. Vô pôs fogo na lenha estumando o vira lata. Barão virou um corisco na vegetação úmida e densa da mata. Nem dava pra definir se era bicho de fato que o cão corria. Mas Vô não queria nem saber. Quanto mais rápido abatesse a caça mais rápido botava fim àquela crendice e saía daquela situação que já estava deixando-o cabreiro. Começava a duvidar de suas certezas. Late daqui, pega dali, grita acolá, o Barão e o Vô encurralaram o bicho. O bicho, minha gente, era um tatu.
O tatu,se vendo encurralado por um velho e seu vira lata, se desesperou na cavucada de um buraco rapidinho para se escafeder. Mas Vô e Barão se acercaram do bicho e antes que ele metesse a cachola na toca, o velho pegou nele pelo rabo. O tatu se esforçava pra entrar no buraco e o ancião contra esforçava para arrancá-lo de lá. Vendo se perdido o animalzinho cascudo deixou-se ser içado. Quando o velho puxou o facão para corta-lhe o fio da vida, humildemente piscando os olhinhos, o bichinho disse:
_ Véio, o sinhô num pode mi matá hoje não, oxente. Hoje é sexta-feira santa, nem.
Ao ouvir aquilo o velho ficou estupefato. Sem chão. Sem ar. De repente soltou aquilo no chão e saiu numa desenfreada carreira pela mata afora. Não houve arbustos ou cipós que parasse o Vô. Até Barão, cachorro experiente nas corridas na floresta, se surpreendeu com a vivacidade e velocidade do ancião, tanto que até ficou para trás. Quanto ao tatu, nem precisa dizer que ele se enfiou no buraco novinho que cavara, nem.
O Vô chegou à beira do córrego esbaforido e todo esculhambado pelo vem-cá-meu-bem e urtigas.
Acocorou-se para beber um pouco d’água e tomar ar. Nisso o Barão chegou e também foi beber água. Vô então disse num fôlego:
_ Eu nunca tinha escutado bicho falá!
_ Nem eu. – falou o Barão.


Splash chuá... Um corpo caiu no riozinho. 

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