Sem filhos e sem escola.


Chegou meio sem querer querendo, entrou pelo portão do fundo e foi ficando. Estava magérrima, muita fome e sofrimento. Viu que ali tinha comida. Apesar do medo, a fome era maior. Ficou por ali, desconfiada. As cozinheiras se compadeceram, era tão feia que não podiam enxotá-la sem remorso. Deram lhe restos de comidas. Comeu. Ficaram com pena ao ver com que voracidade ia devorando as migalhas. Deram mais um pouquinho. Não muito para não se acostumar.  No outro dia, ela veio de novo
. No mesmo horário. Novamente deram-lhe comida. Fartou-se. Já havia um brilho em seu olhar. Demorou um pouquinho mais, entretida com o barulho das brincadeiras da meninada. Deitou-se num cantinho e tirou um cochilo ali mesmo. Depois se foi pelo buraco no muro. Aos poucos as crianças foram se acostumando com a presença dela ali. Aos poucos ela foi demorando mais também naquele ambiente.
Foram se habituando. Criou um laço familiar. Sempre comia, depois se esparramava nos corredores e tirava sua soneca. Ninguém a incomodava. Ela também não incomodava ninguém. Não mais a enxotavam e nem chutavam. Ela até brincava com os menores.
O problema foi quando começou a namorar. Foram tantos namorados que fazia até vergonha.
- Saia daqui com suas sem-vergonhices.
Os adultos a repeliam. As crianças eram curiosidade pura.
Então ela ficou um tempo sem aparecer. Sentiram falta dela. Será que está muito doente ou morreu? Ninguém sabia onde morava. Nem o nome dela. Apenas foi chegando e ficando naquelas paragens.
Depois de alguns dias ela apareceu. Seus peitos estavam grandes. Cheios. Sinal que estava amamentando. Comeu mais. Mas não brincou com os pequenos e nem tirou seu cochilo costumeiro ali. Saiu pelo buraco no muro. Foi-se.
E assim se comportou durante algumas poucas semanas: vinha, comia e ia embora pelo buraco no muro. Não ficava pra brincar com os pequenos e nem para tirar um cochilo. Todos estranharam aquele comportamento.
Houve uma tarde que ela veio faceira, alegre. Mas não veio só. Trouxe seus quatros filhos. Todos bem gordinhos, bem alimentados. A princípio, suas crias ficaram assustadas com o vai e vem nos corredores e com a gritaria das crianças. Mas foram tomando confiança e daí a pouco estavam brincando com os meninos e meninas.
- Que lindos filhotes! – Exclamavam.
 Logo os filhotes sumiram. Não vieram mais. Desfilhada ficou.
Alguém reclamou da presença dela pelos corredores. Não queriam vê-la ali brincando com as crianças. “Ela pode passar doença para nossos filhos”. Tentaram então barrá-la no portão. Ela passava pelo buraco do muro. Taparam o buraco do muro. Não podia mais entrar. Então começou a frequentar o portão todos os dias.
Chegava até o portão. Sabia que não entraria, mas ficava ali sentada próxima dele e cada criança que passava para entrar na escola, ela abanava a cauda como num reconhecimento carinhoso de cada rostinho infantil. E, com olhos compridos e orelhas em pé, espiava para o pátio onde os pequenos corriam e gritavam se divertindo. 
E assim foram seus últimos dias, chegando sempre ao portão, mas sem poder entrar. Sem filhos e sem escola.


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